sexta-feira, janeiro 23, 2004

O simulácro

Os seus olhos choravam sangue. O ranger dos dentes ecoava um som agonioso de ódio e tristeza. Não se preocupava mais em conter as suas entranhas, vomitava guinchos ardentes... indignos de um homem. As lágrimas deturpavam a sua vista e a chuva, batendo ritmicamente no parabrisas, acompanhava numa penosa sinfonia.
Fazem-nos acreditar nos filmes que a nossa vida desfila em frente dos olhos quando encaramos a morte, em flashes doces e amargos. Nunca nos avisaram que poderia acontecer com uma morte alheia, sobre o sangue de um terceiro. Sobre o sangue de um amado.
Como um pião sobre o asfalto, os pensamentos rodopiavam pelos finos axónios do seu cérebro, materializando electricamente aquilo que poetas e pintores ambicionam nos seus criativos.
O fim está próximo.
Os dedos agarravam violentamente a superfície do volante - falta pouco. A voz gelationosa cantava agora a canção mais triste de todas enquanto suavemente largava a direcção. O veículo virava guinchando como um animal moribundo. O mundo parece silenciar quando gira pela ultima vez. Nem sentia as buzinas, nem sentia os movimentos agressivos. O último estrondo tudo silenciou - "Desculpa..."